segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Colapso, formigas e dissonâncias



Minha cabeça cheia de formigas caminhando pra lá e pra cá...

Alguns dias são ruins, fisicamente falando.
Terminei a radioterapia há três meses.
Há que administrar esse revés do corpo que fica a me lembrar que existe sempre que eu insisto em voar. 
Faz parte da minha lição de casa aprender a ficar estacionada por mais tempo.
Entendo que essa experiência me tornou uma pessoa melhor do que eu era, e se esse tumor no meu cérebro tiver esse propósito, vamos conviver bem juntos até que a morte nos separe(ou nos una ainda mais). Sou grata pelo que estou vivendo.

Deitada, meio sonolenta, o primeiro dia me voltou  à mente:
Eu sentei desconfiada na frente do médico que tinha pedido mais exames do que eu esperava ter que fazer naquele dia.
Ele, visivelmente desconfortável, olhava para meus exames em sequência, depois de trás para frente.
Fez uma pausa olhando fixamente um dos laudos médicos, me olhou e respirou fundo cruzando os braços sobre a mesa com os dedos tensos: "- Você tem um tumor em uma área muito delicada do cérebro, e ele é na verdade bem maior do que mostrava a tomografia."

Percebi meu marido encostando-se para trás na cadeira bem devagar. A primeira coisa que pensei foi "Que bom que sou eu e não eles". (referindo-me ao meu filho e meu marido). Sorri para o médico e depois de um sonoro "OK" perguntei qual seria o próximo passo.

Naquele dia(e nos seguintes) eu tinha duas formas de lidar com a situação: olhar para o problema de perto ou à distância. O olhar próximo possibilita ver bem os detalhes, perceber intimamente, absorver. O olhar distante é mais vago, o contorno é menos definido, possibilita a fuga.
Optei por olhar de perto e mais: tocá-lo, ouvi-lo, torná-lo palatável.

Aprendi na vida que a forma mais eficaz de enfrentar um desafio é estabelecer uma relação íntima com ele. Conhecê-lo usando todos os sentidos. 

Ouvi uma verdade incômoda e precisava aceitá-la mesmo que isso custasse mudar radicalmente meu modo de vida dali em diante.
É isso que a verdade faz.

Precisava entender a nova realidade e lidar com ela de uma forma construtiva ou me tornaria uma vítima para o resto dos meus dias. Preciso agir diante dessa realidade de um modo coerente com aquilo em que acredito sem deixar que sombras emocionais e psicológicas dominem a situação.

Em seu livro "Colapso", Jared Diamond aborda um denominador comum entre os impérios falidos: a dissonância cognitiva
O conflito entre pensamento e ação. O não querer olhar de perto o problema, não querer ver o que está destoando, ignorar a realidade tentando encontrar justificativas de reforço para a incoerência adaptando o pensamento à circunstância.
"(...) O homem não age em função de seus pensamentos, mas pensa em função dos atos que as circunstâncias lhe impuseram. A coerência não é a não contradição das idéias ou dos saberes, mas a possibilidade deixada ao homem de achar, custe o que custar, garantias ideológicas aos atos aos quais a racionalidade nos escapa.

Muitas vezes somos reféns dessa incoerência entre o pensar e o agir. Reféns do olhar distante. Quantas vezes pensamos de uma forma mas somos impelidos a agir de forma oposta?  Quantas vezes nos deparamos com o "não enfrentar a situação", ou "fazer de conta que o problema não existe"? 

Idalberto Chiavenato, autor de Gestão de Pessoas, diz que "Quando uma pessoa age de maneira contrária ao que pensa, ocorre um estado de dissonância cognitiva. Surge assim um estado de tensão, ou angústia, então a pessoa reconstrói uma coerência cognitiva, dando um novo significado as crenças anteriores, ou ela muda seus comportamentos para adaptar-se a realidade externa." 

Estamos sempre tentando tornar a realidade mais confortável.

O modo como a gente percebe, interpreta e reage é influenciado pelas tensões que sofremos, pela noção de conveniência, pela acomodação ou medo.
Resta-nos escolher qual será nosso algoz e se vamos sucumbir à ele. Uma convergência de fatos e eventos definem nosso comportamento mas essa definição deve contemplar também nossos valores. 

Por outro lado, é certo que há maneiras de dizer aquilo que realmente pensamos e precisamos, de agir de forma alinhada com os nossos valores, desde que tenhamos a sabedoria de fazê-lo de modo adequado. "Quando mentir for preciso/poder falar a verdade" como diz a música de Maria Gadú. Ainda que quem nos ouça não queira essa verdade. Às vezes os cegos não querem ouvir ...

Custa caro, sim. Já paguei a juros altos o preço por agir conforme o que acredito e dizer o que penso. Não me arrependo, entendo isso como um modo honesto de viver minha humanidade e isso ajudou a firmar minha identidade. A gente precisa saber quem é e à quê veio. Egos ofendidos naufragam, a integridade sobrevive.


Ainda acredito que seja uma coisa boa ter por perto pessoas que saibam dizer o que realmente pensam de forma coerente e consistente. Que queiram sentir com honestidade. Isso ajuda a crescer e colabora com o nosso discernimento. O mundo seria melhor sem tantas dissonâncias. Falemos, de verdade, com as pessoas e procuremos realmente ouvir as pessoas. Digamos o que precisa ser dito também, e principalmente, a nós mesmos. É um caminho sábio. Forçar concordâncias é um caminho certo para o fracasso que virá, cedo ou tarde.

Viver em um baile de máscaras faz com que se perca a capacidade de diferenciar o verdadeiro e o falso. Com o tempo os mascarados já não conseguem dizer a verdade nem para si mesmos, perdem seus próprios referenciais.


Esse vídeo de hoje não poderia faltar. Adoro essa música desde a primeira vez que ouvi, em 2009, quando ainda não estava familiarizada com carecas e hospitais...
Que ela possa falar a verdade pra você como falou pra mim em momentos importantes. É um hino de viver (de um viver urgente, de amor imprescindível e de coragem fundamental). Que ela possa curar a vida de quem precisa e de quem acha que não precisa também.



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