domingo, 27 de dezembro de 2015

A Vaca Jihadista e a Flor Cadáver


Manhã fresca no campo, pássaros anunciando o início do dia e a vaca, a passos lentos, ganha seu espaço para saborear o pasto verde que a espera. Arranca porções generosas de um bom capim, ingere quase sem mastigar armazenando tudo no estômago e depois, com calma, regurgita e mastiga tudo novamente para extrair do alimento todos os nutrientes de que precisa. Os ruminantes fazem isso porque precisam coletar sua comida com rapidez para não ficarem expostos à ação de predadores, para posteriormente, em segurança, processar o que ingeriram.  Dentes bons são sinal de boa saúde, já sabiam os mercadores de escravos. Ainda assim, o dito popular afirma que do “cavalo dado não se olha os dentes ”. 

Podemos entender então que não há valor naquilo que é dado, apenas naquilo que é adquirido com algum sacrifício ou pelo qual pagamos algum preço.


Somos o resultado daquilo que mastigamos, nossos acertos resultam de uma mastigação adequada daquilo que as civilizações ingeriram no decorrer dos séculos. Já os problemas de mastigação, seja por dentes ruins ou por preguiça de mastigar, leva muitos a ingerir o que foi mastigado por outras bocas, conduzindo aos erros de hoje.

Dentes: A palavra que define quem somos e de onde viemos. Não me refiro à medicina legal, refiro-me à história da humanidade. É preciso  ter os “dentes da mente” sadios e afiados, selecionando bem o que vamos “mastigar”.

Na India a vaca é um animal notoriamente sagrado, associado a divindades. Essa tradição remonta a um tempo em que as vacas eram mais escassas e seus derivados desempenhavam (como continuam desempenhando) um importante papel na alimentação hindu. Mesmo as fezes da vaca são importantes, não apenas como fertilizante do solo ou em rituais de purificação hindus, mas também porque nelas surge um cogumelo alucinógeno que também foi amplamente utilizado por antigas civilizações mesoamericanas, conhecido como “carne dos deuses”.

Já em outras culturas a vaca tem menos sorte: Ou é submetida ao abate cruel para abastecer os açougues, ou  sacrificada em rituais religiosos. Ao ruminar, a vaca aprimora a absorção dos nutrientes que lhe garantirão força e boa saúde. Sem o aparato adequado, muitos humanos imitam as vacas ruminando não com os dentes, mas com a mente. Ruminam pensamentos e sentimentos. Comportam-se como  vacas jihadistas.

A jihad que conhecemos nos noticiários é um conceito fundamentalista menor. A verdadeira jihad, a maior, manifestada no Alcorão, consiste no conflito, na  luta interior do indivíduo em busca da conquista da perfeição, do controle sobre suas paixões e da fé pura. Porém, ruminar não é o melhor caminho para este intento. Ruminar é “mastigar e mastigar de novo, depois engolir.” A reflexão é um caminho mais adequado e produtivo. Refletir é meditar e mudar a direção original, o que conduz a evolução. Já o produto da ruminação é revelado sob a forma de excremento (aquele onde brota o cogumelo alucinógeno).

Cada um escolhe a própria maneira de “processar” aquilo que absorve. Quando o resultado do que absorvemos floresce em nós, descobrimos novas nuances de nossa essência. Mas esse desabrochar nem sempre é perfumado. Conforme lidamos com nossa jihad interior, podemos acabar deixando de compartilhar jardins e nos tornamos jarros-titã isolados.

O Jarro-titã é uma espécie de “flor” que, apesar de suas décadas de vida, floresce apenas duas ou três vezes. O falo que dela surge pode chegar a até 3 metros de altura e exala um odor semelhante ao da decomposição de um cadáver. Esse odor atrai insetos carniceiros dos quais ela se alimenta. Diz a lenda que o mal odor da planta deve-se ao fato de que ela devorou quem a plantou, e o mau-cheiro deve-se a decomposição do jardineiro.

Tudo o que exala da solitária flor cadáver, do jarro-titã, é o mau-cheiro que atrai insetos carniceiros. Ela é capaz de devorar quem a plantou. Talvez a terra em que é cultivada tenha sido adubada como  esterco de uma vaca jihadista...

A questão fundamental é que, invariavelmente, absorvemos. Absorvemos tudo o que é perceptível e subliminar ao nosso redor. Somos resultado das nossas experiências e da energia delas. Ao absorver, resta a escolha entre ruminar ou refletir. Entre mastigar e mastigar de novo, engolir e somatizar ou refletir e mudar a direção original. Entre dentes ruins e dentes saudáveis. Entre usar a sua própria boca ou ingerir o que é mastigado pelos outros.

Essa escolha, contudo, não é fácil. Em nossa jihad interior buscamos fazer a melhor escolha e controlar nossas paixões. Algumas vezes somos bem-sucedidos, outras não. Importante é ir em frente, cuidar bem dos dentes para, em uma nova manhã, sair em  busca de pastos mais verdes ou, quem sabe, um perfumado jardim.



domingo, 21 de junho de 2015

Agora. Você Pode.

Agora. Você pode.


quinta-feira, 11 de junho de 2015

São Jorge e a Garrafa Pet

Passando por uma esquina, o papeleiro se deparou com um amontoado de  lixo depositado em uma calçada. Andou mais um pouco e, “estacionando” seu carrinho, pôs-se a vasculhar o lixo que algum cidadão “caridoso” havia deixado ali para “ alguém”.  Ele selecionava as sacolas plásticas e os objetos como se fossem  frutas em um mercado. À certa altura, encontrou algumas garrafas PET perdidas no meio daquele entulho. Colocou-as no carrinho e, vendo que em uma delas havia um resto de alguma bebida, abriu, cheirou o conteúdo e, então, bebeu. Colocou mais algumas coisas no carrinho e seguiu em frente. Testemunhar aquela cena me trouxe à mente uma profusão de pensamentos e sensações.

Após uma inicial revolta interior pela indignidade humana, pelo descaso com o ambiente e todas as emoções relacionadas aos fatos sociais aos quais nos habituamos a ver diariamente e acabamos absorvendo com sendo comuns e “normais”, sobreveio um pensamento: Quando se tem muita sede, todo o líquido é precioso. Como naqueles filmes que ilustram situações extremas de luta pela sobrevivência.

Este contexto extremo me  levou ao momento muitas vezes extremo que leva as pessoas a atravessar a porta do meu consultório: situações limite, a procrastinação que levou a situação ao nível insuportável, desespero, a hora do tudo ou nada.

Somos todos papeleiros que, em algum momento da vida, passaremos por uma “sede“ insuportável. Neste ponto estaremos vulneráveis e dispostos a beber qualquer líquido, ainda que impróprio para consumo. É nesse momento que precisamos escolher quem queremos ser de fato.
Alguns vão preferir procurar no lixo a fazer sacrifícios para trocar o carrinho de papeleiro por uma Ferrari. Só irão buscar ajuda e valorizar essa ajuda quando sua arrogante convicção de que têm toda a água de que precisam e que esta será sempre suficiente para saciar sua sede evaporar com a água que pensavam ser eterna. Esquecem que copos cheios não recebem água fresca. Pior que isso, querem uma ajuda que não requeira sacrifícios na ilusão de que outros resolverão o que cabe à si. Preferem pagar para aliviar a culpa na ilusão de estar fazendo alguma coisa para melhorar a situação ao investir em sua própria capacidade de realização.
Ao confrontarem seus dragões, preferem gritar por um “São Jorge” disponível que prometa matar a besta com um só arremesso de lança.

É lugar comum admitir que algumas pessoas são mais fortes do que outras, assim como aceitamos como normal e aceitável ver um papeleiro mexer no lixo em uma equina. Assim, o mundo se divide entre os fortes e os fracos, os espertos e os idiotas, as vítimas, os dragões e os “São Jorges”.

Nessa história toda, prefiro ser a garrafa PET. A garrafa pet é moldável, o calor das chamas dos dragões não destrói sua essência, podendo das chamas transformar-se em muitas coisas novas, com múltiplas utilidades. A invencível garrafa PET, que mesmo ao degradar-se no ambiente, em um longo processo de mais de 400 anos de duração, mesmo após existir como garrafa deixa em suas moléculas a marca dos elementos que a compõem. Garrafa PET, o “tesouro” do papeleiro. Garrafa PET não precisa gritar por um São Jorge porque não teme o fogo dos dragões.

Porém, ser garrafa PET é uma escolha. Requer um processo de fabricação e uma elaborada composição química. Mas é melhor do que temer dragões ou depender de um São Jorge disponível que não erre o arremesso de sua única lança (que pode nos atingir e matar).


O mundo não é feito de fracos e fortes, espertos e idiotas, vítimas e dragões, “São Jorges” e lanças: O mundo é feito de papeleiros e garrafas PET.


quinta-feira, 5 de março de 2015

Geladeiras Falantes






* Obs: A situação aqui descrita foi escrita e publicada com a anuência expressa dos envolvidos.




A passos entediados ele alcança a geladeira, abre a porta e fica olhando lá dentro, como quem contempla a paisagem através de uma janela. Um suspiro, fecha a porta e sai da cozinha estendendo o braço, dando um “tapa” no interruptor para apagar a luz.

Não muito longe dali, em uma empresa, a secretária da diretoria se revoltava com o odor fétido que rescendia da geladeira da copa toda a vez que alguém abria a porta para pegar alguma coisa. Restos esquecidos de donos anônimos.

 Cenas como estas acontecem na vida de muitas pessoas pelo menos uma vez. Aconteceu com uma pessoa que veio ao meu consultório.

A pessoa costumeiramente ia até a geladeira, abria a porta, olhava, fechava a porta.

“ - Como é sua geladeira?” Perguntei.
“ - Como assim?”
“ - Como é, o que tem dentro, como guarda as coisas?” - Insisti.
Um pouco desconfortável, respondeu:
“ - Sei lá, tem coisas de geladeira.”

Pedi que fechasse os olhos e descrevesse o que via quando abria a geladeira tentando visualizar o máximo de detalhes possível. A partir desta descrição, pudemos identificar todas as questões carentes de organização e respostas em sua vida prática. Ao final da sessão, ao se despedir, olhou-me firmemente e disse: “- Caramba, a minha geladeira fala!!”. Sorriu e disse que voltaria na próxima semana com uma nova  “lista de compras”.

Sim, as geladeiras falam. Elas nos contam sobre nossos gostos, apegos e medos. Acusam nossas procrastinações, denunciam a ausência de pro-atividade, a deficiência de planejamento, nossas carências, nossa forma de administração do tempo. Elas avaliam nossa habilidade de gestão e disciplina.
Geladeiras...algumas não falam, gritam, como no caso das corporativas, aquelas que ninguém quer limpar porque o lixo apodrecendo lá não é de ninguém. Mas o mau-cheiro perturba a todos os que as usam. Iogurtes vencidos? Presuntos e frutas apodrecidos? Convivo com o mau cheiro, reclamo, mas não removo, porque isso não faz parte das minhas atribuições. Espero que alguém vá lá e resolva.

Em casa, vou empurrando as sobras para o fundo das prateleiras, para consumir amanhã ou depois, dá pena jogar comida fora com tanta fome no mundo...restinho aqui, restinho ali, quem sabe alguém consome. Deixo ali até que fique impossível de consumir, só assim jogo fora o que eu não quero mais, sem sentir culpa.

Geladeiras falam. Por isso as pessoas vão até lá e ficam contemplando. Para escutar as verdades guardadas lá dentro. Mesmo que não consigam ouvir nada do que está sendo dito, há uma sensação temporária de conforto que se traduz em uma ilusória sensação de que as coisas são mesmo assim e está tudo certo, pelo menos até a inquietude bater e dar vontade de abrir a geladeira de novo.

Não há como alguém arrumar a própria vida sem antes arrumar a geladeira... A vontade (abrir a geladeira e ficar olhando) é a promessa de uma conquista mas só através da ação (arrumar a geladeira) é possível cumpri-la. A gente precisa fazer na mesma proporção do querer. Ainda que eu erre e caia, a cada vez que eu supero o medo de realizar me torno mais forte.



quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Olhos vermelhos?


Embora o choro sirva como desabafo para o cansaço, saber a hora de parar antes que os olhos fiquem vermelhos e inchados demais para enxergar as saídas é uma atitude importante de cura e auto-preservação. Queixas, (des) culpas e vitimização não solucionam crises. Não deixe que comentários como "Não se desespere" façam você se sentir ainda pior e enfraquecido ( é o que geralmente esse tipo de comentário faz, geralmente vindo de quem se sente em posição superior). Descanse, contemple o entorno, a si mesmo e vá em busca de uma nova realidade - você é capaz de criar e contemplar novos cenários sempre que age em busca de novas janelas. O ano só poderá ser novo se você permitir novos acontecimentos em sua vida, livre da gaiola onde você se esconde toda a vez que "chove". Feliz 2015.