terça-feira, 27 de agosto de 2013

René não usava saltos altos


Estacionamento de farmácia. Encosto o carro próximo à uma vaga onde duas mulheres conversam, uma delas chacoalhando as chaves do carro na mão (tipo "venham me assaltar!") e a outra tentando desastrosamente parecer elegante em saltos exageradamente altos a  entortar-lhe os pés e arquear os joelhos fazendo-a parecer um orangotango depilado de tamancos.
"- Deeeeeus me livre! " 
"- Pois é, amiga, juro por Deus..."foi a parte da conversa quase gritada que ouvi enquanto saía do carro.

Cheguei ao balcão e entreguei a receita médica ao vendedor, que foi andando va-ga-ro-sa-men-te na direção das prateleiras. Ao meu lado chega uma senhora, óculos enormes, agarrada à uma bolsa parecendo vazia. "- Ah, como eu queria não ter que tomar remédio pra pressão alta, meu Deus!" Antes que ela dê seguimento ao que pretende transformar em conversa, pego o remédio, agradeço rapidinho ao vendedor e tomo o rumo do caixa. 
Lá, a operadora conversa com outro funcionário: "- Pois é, meu filho...tô lhe dizendo...só Deus mesmo!"

Entrei no carro e balancei a cabeça: Deus deixou de significar.

Deus virou um cesto onde se joga tudo o que não se quer resolver. E creiam, a gente sempre arranja desculpa para aquilo que não quer fazer e motivo para aquilo que se quer fazer - e em um ou outro desses momentos há quem meta Deus no meio para aliviar, como se fosse analgésico... 
Empurra-se tudo com a barriga esperando que "Deus", leia-se "tempo"ou "alguém", resolva tudo, justifique tudo,esperando que "Deus" torne tudo mais suportável ou verdadeiro, não pela fé, mas porque a credibilidade de Deus o torna uma marca, um "label" seguro para qualquer coisa. Na dúvida, diga "Deus" que fica tudo certo.
Essa palavra justifica o passado, alivia o presente e resolve o futuro. Pelo menos na ótica de quem não consegue assumir sua responsabilidade com a própria vida. "Deus"  emagrece, paga dívida, arranja casamento, emprego, carro novo e até atesta a veracidade da fofoca ...pena que não lava roupa nem cozinha...puxa vida!

Deus cria a vida, mas vivê-la é tarefa nossa. Isso inclui tomar decisões, agir, amar, sofrer e aproveitar.
Por vezes as ações comuns são insuficientes e há a necessidade de "super / ações", por assim dizer. A superação nada mais é do que uma ação extra que eleva o ser através de uma motivação interna muito poderosa para ultrapassar obstáculos superando-os, fazendo a existência  evoluir em um outro nível.

O futuro do qual são  feitos os nossos sonhos nos é roubado um pouco a cada dia. O jeito é não esperar para vivê-los. Viver é mesmo urgente...


Muitas vezes, antes de dar o salto da "super / ação" que conduzirá ao momento de superação (é pra repetir mesmo), precisamos nos encolher e, para tanto, recolher, como se recolhem as águias no topo das montanhas. Catalizar toda a energia gerada internamente a partir de um ato de concentração em si para poder, no momento certo, liberá-la de modo a não perder o impulso no meio do salto. Como uma mola humana. É o estudo das próprias dores, que não deve ser confundido com depressão. É tempo vivido interna e intimamente. A duração desse tempo vai depender da extensão do salto (saltos altos?).

A dor é a hemacea do artista, o alquimista que transforma a dor em poesia viva. Não confunda dor com sofrimento: você pode sofrer com a dor ou aprender com ela, a escolha cabe a cada um. Ao celebrar a vida com sua arte, o artista celebra também a dor, pois a vida é movida pelos desconfortos, necessidades e questionamentos. Buscamos, e  buscamos porque sentimos que algo nos falta, e essa falta é um desconforto. Todo mundo sabe que a vida não é uma festa permanente. Quem vive na festa não vive, apenas existe. Há um abismo de diferenças entre viver e existir nesse mundo. Viver exige movimento, que requer esforço e vontade, que gera desgastes mas traz a verdadeira alegria da realização. ( "No pain, no gain" - Sem dor, sem ganho - é o ditado). 

Me incomoda a tradução da célebre frase atribuída à René Descartes, " Penso, logo existo." Há quem diga que a frase certa é "Duvido, logo penso, logo existo." Na minha visão, ambas estão erradas. Para existir não é necessário pensar, nem tampouco duvidar. Muita coisa (e muita gente) existe, mas não pensa. "Penso, logo SOU."- essa, para mim, é a frase correta.

Deus viabiliza a nossa existência mas é a nossa capacidade de elaborá-la que nos torna quem somos e o destino dos nossos sonhos.
Há quem exista, há quem viva e há quem supere. E Deus...bom, Deus pode ajudar muito, mas não fará aquilo que cabe à nós. Ele apenas dirá: "- Não desista! "

Segue o vídeo: