quinta-feira, 12 de junho de 2014

Luzes Pálidas



Gosto de montar quebra-cabeças. Ver os fragmentos da desconstrução revelando o que estava oculto. É a oportunidade de descobrir detalhes que a contemplação da figura inteira não evidenciava.

Lembro de um que ganhei quando criança, tinha poucas peças, com a imagem de Branca de Neve e os sete anões.  Outra coisa de que gostava era assistir as comédias de Jerry Lewis  que volta e meia passavam na televisão (e que já eram antigos naquela época), enquanto comia pipoca.
Toda a criança se sente atraída por guloseima, comédia e desenho animado…e costumam não gostar do escuro.

Verdade é que, ao assistir Branca de Neve pela primeira vez, fiquei branca também – de medo.  Fiquei aterrorizada com os olhos daquela rainha má, me encarando das profundezas de uma TV à válvula. A coisa toda piorou ao ver a pobre princesa correndo desembestada na floresta escura ameaçada pelas árvores, sombras e olhos de coruja, fugindo do caçador que recebera ordens da rainha para arrancar-lhe o coração. História para crianças sobre uma psicopata narcisista, assassina devoradora de órgãos humanos?

Os contos de Perrault e de Grimm não revelam universos infantis. Não são apenas contos, são também quebra-cabeças. O Gato de Botas, com sua estratégia pouco ortodoxa e politicamente questionável de ascensão social, Chapeuzinho Vermelho, com uma descrição detalhada do lobo devorando uma velhinha com requintes que deixariam Hannibal Lecter com inveja (com direito a sangue engarrafado e tudo), ou Branca de Neve…

Segundo o pesquisador Eckhard Sander, os Irmãos Grimm encontraram uma contadora de estórias chamada Marie Hassenpflug, trezentos anos após o ocorrido com Margaretha von Waldeck, assassinada na Bélgica. Muito bonita e de pele muito clara, viveu com os pais, os Condes de Waldeck, no século XVI, no castelo que ficava em Bad Windugen, na Alemanha, onde cerca de 78 pessoas foram julgadas pela inquisição entre 1532 e 1664. A região, cercada por sete montanhas, tinha na mineração uma de suas principais atividades, o que causou problemas de crescimento em muitas crianças que trabalhavam nas minas. A mãe de Margaretha morreu pouco tempo após o parto do 11º filho, quando ela tinha 4 anos de idade. Cerca de dois anos depois seu pai casou-se com Katharina von Hatzfeld (a madrasta).
Ainda jovem, Margaretha foi enviada para Bruxelas (a floresta), na Bélgica. Em meio a intrigas envolvendo Filipe II de Espanha e uma contenda política na corte, a moça morreu envenenada por arsênico aos 21 anos, em 13 de março de 1554.

Na versão dos irmãos Grimm, Branca de Neve sofre quatro tentativas de assassinato: na primeira, a rainha envia o caçador e ordena que ele lhe traga o fígado e os pulmões da menina para posteriormente comê-los (uma prática comum em algumas culturas desde a antiguidade, visando absorver a força de quem é consumido). Nas outras tentativas a ingênua Branca de Neve acaba se deixando seduzir pela conversa da bruxa, sendo salva pelos anões, até que na quarta vez ela acaba “morrendo” engasgada ao morder a maçã (e ela nem estava no Éden…). A moça é colocada então em um caixão de vidro, sendo velada pelos anões, por uma coruja e, na sequencia, um corvo e uma pomba.
Ao fugir para a floresta, Branca de Neve adentrou a escuridão do desconhecido, conhecendo uma nova realidade além da proteção do castelo, mas foi preciso um trauma para que esse movimento acontecesse. Conforme vai descobrindo as nuances do espírito humano (os sete anões, a bruxa) e deparando-se com a realidade ameaçadora, a inoscência infantil de quem vive no imediatismo vai dando lugar ao entendimento, adquirindo conhecimento. Porém, para adquirir conhecimento é preciso “morrer”. É preciso desapegar do ser anterior, absorver o conhecimento adquirido (no recolhimento, casulo ou caixão de vidro), para então despertar para a vida com um novo olhar para trilhar novos caminhos para novos destinos. A sequencia coruja, corvo e pomba trazem a simbologia do processo ilustrando o ciclo: a coruja, um animal da noite, simbolizando o conhecimento racional e intuitivo, a sabedoria. O Corvo, um símbolo de solidão, cura e morte. Por fim, a pomba – paz, liberdade e renascimento.
Vencer a escuridão e a morte não é um convite atrativo, mas é um desafio necessário para os que buscam o conhecimento que traz paz e liberdade, algo que a inoscência infantil, do querer a satisfação das necessidades imediatas, não nos permite alcançar. 
Contos, fadas, bruxas e espadas. À noite somem as flores, para prestarmos atenção às estrelas.
Afinal as luzes, na claridade, são pálidas.
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