Em
algum salão de beleza, um profissional de madeixas joga para o alto e para os
lados o remanescente do que já foi a cabeleira de uma senhora:
“-
AAAfff! Tá a cara da riqueza!!”. Satisfeita, a cliente vira a cabeça para um
lado e para outro com olhar fixo no espelho enquanto toca com mãos espalmadas
as pontas dos cabelos: “- Temos que investir na gente, né querido?”
Beijos no ar, acerta a conta no caixa e um
“-Até a semana que vem!”
O que esta
dama faceira, o vale da morte do Salmo bíblico e a cultura espanhola têm em
comum?
No conhecido Salmo 23, lemos “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra
da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu
cajado me consolam.”
Durante os 36 dias de caminhada até Santiago de
Compostela, na Espanha, também usei um cajado que me serviu (valeu) de apoio
muitas vezes, e sempre que aceitava ou concordava com alguma coisa a expressão em
espanhol utilizada era “¡Vale!”.
Em todos os casos estão sendo atribuídos valores a uma
experiência. Andar por um vale é atravessar uma região (ou um momento) onde
estamos numa posição mais baixa que as montanhas ao redor, que nos impedem de
ver além do horizonte que nos cerca com muros rochosos. Segundo o salmista, os
medos e incertezas desta situação são compensados pelo valor do cajado e do
suporte que ele proporciona para chegarmos bem sucedidos ao final da travessia.
A travessia dos vales colocam à prova o valor do peregrino (e também os valores
que o sustentam).
Ao usar a expressão “¡Vale!”, na Espanha, a aceitação e concordância agregadas a ela contém a
mensagem subliminar de que aquilo que está em questão é valorizado.
Valor é uma propriedade atribuída àquilo que vale
investimento de recurso financeiro, tempo ou dedicação.
No sistema sobre o qual se estabelece nossa
civilização, praticamente tudo é “precificável”. No entanto, atribuir valor é
hoje uma tarefa frequentemente mal compreendida. Não raro o valor de uma pessoa
no “mercado social”é atribuído conforme seu poder de compra.
Quanto você vale?
Ao usar a expressão
“A cara da riqueza”, o cabeleireiro quis elogiar a cliente, associando sua
imagem a algo caro e que, portanto, deve ter alto valor. Ao ver sua imagem
melhorada esteticamente, a cliente entende que adquiriu mais valor com a nova
imagem, agregando a si, indiretamente, o custo do serviço. Entretanto, há
algumas questões aqui que merecem ser analisadas (vale investir nisso).
Valores mais altos são atribuídos a coisas raras ou
feitas com materiais considerados “nobres”. Assim, por essa lógica, maior valor
ou maior custo seria sinônimo de maior qualidade. Sabemos que essa não é uma
regra exata, nem mesmo proporcional.
Por outro lado, ao investir em sua imagem a cliente
entendeu que investiu em si mesma. Investir na imagem é muito importante, pois interfere
diretamente em questões profundas da personalidade e da auto-estima. Sua imagem
deve refletir e valorizar quem você é.
Porém, como eu disse, a imagem reflete, não “é”.
Quando você vê sua imagem no espelho vê seu reflexo. Aquela é uma imagem
projetada, não é você. Assim, quando a feliz dama escovada afirma que investiu
em si mesma, investiu na imagem, não no ser.
Da mesma forma, quando você sai com amigos, vai a
festas, faz um passeio, está investindo em lazer, não em você.
Dedicar-se ao cuidado com a imagem, usufruir do lazer,
adquirir bens, são ações úteis, importantes e necessárias, mas aqui a ordem dos
fatores interfere no resultado. Se não houver boa sustentação tudo vai ruir na primeira
chuva e esse investimento não vai servir nem como remédio para a ressaca
resultante. A “cara da riqueza” vai
beijar o chão.
Investir em você é investir tempo, dedicação e
recursos em algo que agregue valor ao “ser”, ao aperfeiçoamento da mente, do
espírito, da personalidade. Isso é o que nos define verdadeiramente. Este é o
único valor que permanecerá com você por toda a sua existência. Todo o resto é
efêmero. Todo o resto é reflexo. Sem investir nisso em primeiro lugar, todo o
investimento paralelo é desperdiçado. Quando você se arruma diante do espelho,
você vê transformar-se a imagem refletida nele a partir de seus gestos, não o
contrário, salvo no caso em que alguém por algum motivo prefira pentear o
espelho e não os próprios cabelos. Ainda assim, a imagem no espelho não vai
mudar se a mudança não ocorrer em você.
Apesar disso, quanto você direciona em energia e
recursos para investir em você, realmente? Na maioria dos casos, aplica-se
tempo, dinheiro e dedicação ao lazer e à imagem no equívoco de estar investindo
em si mesmo. Você é o resultado do investimento que faz no seu “ser”. Se o
“ser” cresce, amplia e aprofunda,
isso vai refletir em tudo ao redor e haverá mais aspectos positivos a ser
refletidos na imagem. O lazer também terá outro significado, deixando de suprir
carências ou ser um momento de extravasar pressões com as quais não se sabe
lidar para tornar-se o compartilhamento do “ser” feliz e realizado. O
profissional será mais equilibrado, produtivo e eficaz pois conhecerá seu
potencial. As relações afetivas e interpessoais serão mais geridas pelo suporte
mútuo e pelas parcerias em vez da projeção de frustrações e cobranças. Sem um interior saudável tudo ao redor se contamina.
“Por isso não desanimamos. Embora
exteriormente estejamos a desgastar-nos, interiormente estamos sendo renovados
dia após dia, pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo
para nós um valor eterno que pesa mais do que todos eles. Assim, fixamos os
olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é
transitório, mas o que não se vê é eterno.” ( 2 Cor 4:16-18 )
Investir em você? “¡Vale!”