quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Detalhes do tecido


As coisas não se resolvem sozinhas, elas apenas pegam no sono. Por um tempo.
Cirurgia à vista.
Sempre que se precisa fazer uma cirurgia é bom ter o parecer de mais de um médico.
No meu caso, dois à favor da cirurgia e um pela espera e observação.
Com o meu voto o placar ficou em 3X1 para a cirurgia.
Terça-feira, 02 de Outubro de 2012. Cirurgia para remover a vesícula e cistos nos ovários. 

Não gosto de pendências. Aprendi cedo que, quando se tem algo para resolver, melhor fazer logo.

Ninguém resolve por você, apenas adia o pagamento daquilo que é sua incumbência decidir e fazer.
Decidir e agir. Não é bom fugir dessa responsabilidade para com a nossa vida. Mesmo se você decidir não agir. 
De qualquer forma isso terá um custo. Decidir é mais fácil do que parece: Pare. Acalme. Pense objetivamente no quanto custará tomar a decisão e se isso traz paz ao coração e por quanto tempo. Sua decisão está em conflito com quem você é ou está alinhada com aquilo em que acredita? Você quer o quê da sua vida, afinal de contas? Qual a história que deseja escrever? Porque saiba que tudo aquilo que decide e faz deixa impressões entalhadas em você e acaba definindo quem você é. E se não decide ou não faz, sua vida será uma grande folha vazia, em branco. Não se transforme naquilo que não quer ser.

Assim como escolhemos a qualidade do material usado na construção da casa onde pretendemos morar devemos decidir nossas ações. O que é melhor: pagar barato agora e bancar a reforma depois, quando as paredes racharem e os encanamentos estourarem, ou apertar o orçamento da decoração e zelar mais pela estrutura?
O medo de errar só existe para aqueles que não sabem o próprio nome ou andam por um caminho que não é seu.
Abraço e boa Quarta-feira. Segue o vídeo:


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Em companhia das águias


Durante o tempo em que fiz radioterapia eu tinha consultas e avaliações médicas semanais.
Por duas vezes fui atendida por um médico auxiliar.
Na segunda vez em que ele me atendeu disse, sem me olhar no rosto: "- Olha, no máximo esse seu tumor vai estabilizar por um tempo. Talvez estabilize, talvez não, e dificilmente ele vai reduzir só com a radioterapia. Um dia, se isso acontecer, vai ser uma redução ínfima. "
Saí do consultório, o marido junto, olhei pra ele e disse: 
"Foi a última consulta que fiz com esse aí. Eu vou é comer um chocolate." 
Depois disso todas as consultas foram com o meu médico mesmo.

Nesses 117 dias desde que a radioterapia acabou tenho andado como dá e nem penso em me queixar disso.
Ressonâncias magnéticas periódicas de controle - Já fiz duas desde que voltei pra casa, e hoje recebi o email do médico com a análise do último exame.
Feitas as devidas considerações, o laudo dizia: " (...) o meningioma encontra-se estável sem progressão, parece que houve discreta redução."
Minhas mãos começaram a tremer e eu li novamente pra ter certeza que estava lendo certo. Redução? Já?
É uma discreta redução, é um pequeno progresso eu sei, mas pra mim é uma imensa vitória, é uma resposta, e eu comecei a chorar ali sentada, estava sozinha em casa.
Minha mente se encheu de frases, palavras, vozes, músicas...
Me curvei e agradeci muito à Deus por esse presente.

E tenho que agradecer muito também aos anjos que estiveram acompanhando de perto esse trecho duro do caminho e aqueles que não só acompanharam mas estiveram agindo junto, tornando possível chegar até aqui. O nome de cada um está bem guardado no meu coração. Não vou citar todos porque são muitos, teve muita gente trabalhando junto, fazendo acontecer num sentido bem prático. Eu nunca vou esquecer dessas pessoas que deram as mãos ao meu redor pra que fosse possível andar essa distância toda. Eu não teria conseguido sem vocês.

A estrada ainda é longa, eu sei. Os efeitos da radiação ainda estão presentes. Mas o amor de Deus nos eleva ao alto onde pertencemos, onde gritam as águias no topo da montanha. Esse video de hoje e cada palavra nele tem um valor especial pra mim. Que esse meu relato sirva para que cada um possa perceber que não importam as estatísticas nem o tamanho dos obstáculos: a fé e o amor são invencíveis. 
"Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé."( 2Tm 4:7 )
 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Tudo bem

Vieram perguntas depois de minha última mensagem.
Tive uma séria infecção, ruim mesmo, houve uma baixa imunológica significativa e não deu pra responder antes.
Tenho médicos especiais e cuidadores zelosos. Obrigada. Sortuda, eu.

Voltemos às perguntas. Fiquei em dúvida se respondia somente à quem perguntou ou se fazia isso em forma de mensagem. Depois de refletir bastante, resolvi correr o risco e me expor. Perguntas do tipo : Se eu acredito em vida após a morte, qual minha religião, o que significa ter fé, como faço quando há crise pra superar e outras coisas que giram em torno desses temas. São temas delicados para muitas pessoas e eu me preocupei em fazer isso de uma forma honesta, mas cuidadosa. Não quero ferir ninguém com minhas considerações. Se isso incomodar quem recebeu de forma ruim, por favor pare agora a leitura e ignore esse email. Não quero invadir sua praia.

Eu acredito que a morte seja uma forma de transformação, que comparo ao nascimento de uma borboleta. Nossa vida terrena é o nosso tempo lagarta, amadurecemos e nos tornamos casulo e, ao morrer, borboletas. Mas creio que antes de se preocuparem com a morte, as pessoas devem se ocupar em estar realmente vivas até que ela aconteça.
Há alguns casulos que secam antes que a borboleta se forme... Muita gente leva a vida como um fardo, cheio de problemas pra resolver e passam anos reclamando das mesmas coisas, culpando a vida e os outros por suas frustrações, conduzindo tudo como um jogo que precisam ganhar ou dependendo de acontecimentos e soluções externas para conseguirem estar felizes - o que nunca acontece e tudo então permanece nas metas da lista de fim de ano. Não conseguem estar bem, sempre falta alguma coisa.
E assim o casulo  seca antes do tempo. Morremos, mas nunca deixaremos de existir para aqueles que nos amam se eles forem suficientemente maduros para entender que mesmo aquilo que não está em seu campo de visão ainda existe. Para os bebês, o mundo tem apenas a largura daquilo que enxergam. 

Outro dia fui à um salão de beleza e estava lá uma senhora, cabo eleitoral de um certo candidato à prefeito. Era eu frente aos argumentos de todas as 12 mulheres presentes.  Foi uma experiência interessante, e curiosamente conduzimos os debates sem nos descabelarmos, para alívio da cabeleireira. 
O problema sobre emitir opinião sobre religião, política e religião é o seu denominador comum: os fanáticos. Sobre religião (eu discuto religião, futebol e política sem problema e acredito na boa convivência das diferenças) -  Tá, futebol eu não discuto muito porque não entendo o suficiente, sou bem fraca no assunto - . Sei que isso ainda vai me render  desafetos e indignações, é sempre assim (não o futebol, mas argumentar sobre religião e política).

Verdades duras demais viram prepotência e trazem a necessidade de provar que estamos certos para que os outros vejam como somos fortes, como temos razão. Já tive razão, hoje prefiro ser feliz ( já li isso em algum lugar... de Ferreira Gullar, se não me engano)
Religião deveria, em princípio, ser um caminho para nos "religar"com a essência espiritual da vida. Infelizmente virou política, negócio, justificativa de matança ao redor do mundo e ao longo da história das civilizações. 

Conheço muitas religiões, participei de várias e respeito todas. Não sigo nenhuma.

Leio a Bíblia com muita frequencia e quanto mais leio o Novo Testamento mais claro me parece que Jesus buscou sempre libertar a espiritualidade da religião.
Símbolos, rituais, regras, dogmas, doutrinas, misticismos, para mim são clausuras que impedem a visão nítida da fé em sua amplitude e se tornam peças sobre o tabuleiro de um jogo reduzido à dinheiro, poder, política e fuga do enfrentamento das carências emocionais e psicológicas. Isso para mim. Para muitos não é e respeito o que lhes é sagrado porque o amor não depende da concordância. Não tenho aqui o intuito de julgar a  religião de ninguém, menos ainda julgar alguém por sua religião - à isso chamo ignorância - entendo que tudo tem um papel na vida das pessoas e todos devem ter o direito de crer naquilo que lhes responde às perguntas e acalenta o coração. Não me atrevo à converter ninguém a nada (pessoas não convertem pessoas) e nenhuma pessoa comete a imprudência de tentar me converter à nada. Uso "conversão" aqui no sentido de mudança de rumo e atitude.
Expresso o que isso é pra mim, como disse, e sei que para muitas pessoas o quadro é diferente e conheço muitas pessoas que praticam suas crenças com muita verdade no coração. É isso que importa, verdade no coração, não a etiqueta da fé.
Para estes há crença, para os hipócritas há religião. Praticar uma religião não significa que você realmente crê no que proclama. Outros podem dizer que eu sou uma perdida se isso os deixar mais confortáveis. Sou, talvez, o que poderia chamar de cristã ultra-primitiva, uma religião que não existe. Portanto não sigo religião. Minha fé não tem nome.

Estou apenas me posicionando aqui com honestidade porque me propus à não ter medo de expressar o que penso de verdade, porque cheguei à um ponto em minha vida em que o julgamento das pessoas deixou de ter importância. Aliás, isso não deveria existir. Já quis aceitação, mas já tenho trabalho suficiente aceitando à mim mesma. Eu não poderia me esquivar de responder porque seria covarde se o fizesse, me mantendo segura em meus discursos unilaterais do lado de cá da internet sem me expor ao desconforto. Já atirei e recebi pedras. É um erro idiota.

Ainda respondendo, entendo que ter fé é como proteger uma chama do vento - enquanto a mantivermos acesa ela nos proporcionará luz. Posso comparar também à energia elétrica, a fé é a força que mantém nossa alma funcionando em sincronia com Deus, é o que torna possível enxergar além do tempo nublado, do mar tumultuado, além do abismo que nos separa das coisas, da fé- licidade.  

Quando me perguntaram sobre as crises, não ficou claro se estavam se referindo às crises decorrentes do meu tumor cerebral e do tratamento ou de crises da vida em geral.
Independentemente da natureza das crises, para mim elas nunca são negativas. Podem ser duras, pesadas, mas nunca negativas. Não vejo punição alguma na crise.
Ao contrário, se passo muito tempo sem crise, fico inquieta. Acho que isso é peculiar em artistas, as crises nos alimentam, nos inspiram e se soubermos suportar o vento, aumenta a resistência. A calmaria acomoda, dá sono, e sono demais vira preguiça. A fé ajuda a suportar o vento e ouvir suas mensagens. O amor mantém a gente aquecido quando o vento esfria. Quando a coisa fica pesada, peço ajuda. Deus nunca deixou de estar lá, até quando eu não peço. Dá pra sentir o amor perto, a segurança.Um amor que cura e fortalece.

Pra enfrentar a crise é mais ou menos isso: conheça seus limites para poder trancendê-los, saiba esperar quando necessário, conheça o seu desfio e creia que só há um motivo para aquele momento existir: o fato de que você pode superá-lo.

Assim é que aqui expus meu coração e pensamento. Minhas respostas me servem por enquanto e talvez ajudem outros a obter as suas. Outros não precisam de respostas, talvez nem de perguntas. Pois é. Boa Semana pra todo mundo. Segue o vídeo :


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O grande e o melhor


Essa semana deixaram em minha porta um pacote. 
Estava escrito do lado de fora: "A fé é a menor palavra e a mais poderosa". Dentro havia um livro, e como remetente estava apenas um número. 
Perguntei ao porteiro quem havia deixado e ele então me explicou que havia sido uma vizinha.
Aquilo me surpreendeu porque tratava-se de alguém com quem tenho pouquíssimo contato, não mais que a troca de meia dúzia de palavras em um elevador ou na garagem.
Resolvi ligar para agradecer e minha surpresa foi ainda maior com a calorosa acolhida de alguém que pouco conheço - e senti vergonha por isso.
Moramos tão perto e estamos tão distantes.
Ela me recordou de coisas que eu havia lhe dito anos atrás e que eu já nem lembrava mais.
De alguma forma ela ficou sabendo sobre o que eu estou vivendo - não perguntei - e quis demonstrar aquele cuidado. 
Foi algo pra pensar.

Há algum tempo eu desisti de ter melhores amigos. Talvez por não querer mais ser mero objeto de decoração na vida deles, um velho quadro na parede destoando da decoração, como me tornei. Fiquei ainda mais reclusa neste último ano, estreitando bastante a passagem na porta da proximidade.

Já tive melhores amigos. Hoje prefiro ter grandes amigos e ser uma grande amiga. A diferença é que não existe a imposição, a cobrança de ter que ser o melhor, mas apenas grande.
Quando se deposita em alguém o título de melhor amigo as decepções terão um peso devastador. Os grandes amigos podem falhar sem causar tanto dano quanto os melhores amigos. Sim, nesse caso prefiro o grande ao melhor.

Somos mutantes de nós mesmos. Nossos sonhos vão se moldando com o tempo, com a idade e as experiências. Alguns morrem, outros adormecem,outros desabrocham, como os relacionamentos. As pessoas que encontramos na vida podem permanecer por um tempo, participar com grande intensidade, mas os caminhos se distanciam até perder de vista. Outras chegam despretensiosamente e se tornam um precioso tesouro. Outros se perdem no fundo de uma gaveta e de repente encontramos de novo. Precisamos nos reconhecer nos outros de vez em quando para não ficarmos sem bússola.  
Tentamos ser felizes na correnteza. E precisamos conseguir, ou nos afogaremos e seremos apenas fragmentos de corpos boiando até finalmente encontrar o mar, sem nos darmos conta disso até ser tarde demais. 

Encontrei uma conhecida na padaria outro dia. Ela elogiou meu corte de cabelo e eu disse que havia cortado curto devido aos efeitos da radioterapia. Expliquei o problema sem entrar em muitos detalhes. "- Como assim...Não pode!". Foi tudo o que ela disse, marejando os olhos. Dei-lhe um abraço. Ela tratou de se despedir e cada uma seguiu seu rumo. Ela foi andando à passos lentos, parecendo ter esquecido o que precisava comprar.
Passei no caixa, entrei no carro. Chorei.
Por que eu contei? Eu poderia não ter dito nada. Aquela resposta tão curta acabou comigo naquele momento. Ela só queria um cumprimento social cordial, e eu lhe dei um soco gratuitamente. Talvez ela evite cumprimentar conhecidos depois daquilo.

Qual o nosso real valor no mercado da vida? O quê realmente resta de importante quando nada mais resta? Talvez a resposta apareça quando substituirmos o "O quê" da pergunta por "Quem".

Meus amigos da família. Meus grandes amigos, a quem eu amo muito. Dos que choram no meu colo em plena Segunda-feira aos que deixam bolos deliciosos para o meu filho em minha ausência. Dos que me honram com sua confiança e que se revelam imensos quando eu menos espero. Dos que preservo desde a infância, da universidade, da minha terra natal, aos que me querem junto nos almoços de Sábado. Os que escrevem seus nomes em cartões imensos e carinhosos quando a "professora" falta.Os que me salvam. Os que me curam. Os daqui e de tantos cantos do mundo. Os novos amigos que conheci desde sempre e que de recente só há mesmo a data em que nos encontramos. Os que, embora geograficamente longe estão presentes em todos os momentos "dentro do coração", como diz o Milton Nascimento.

Sou feliz porque amo muita gente.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Colapso, formigas e dissonâncias



Minha cabeça cheia de formigas caminhando pra lá e pra cá...

Alguns dias são ruins, fisicamente falando.
Terminei a radioterapia há três meses.
Há que administrar esse revés do corpo que fica a me lembrar que existe sempre que eu insisto em voar. 
Faz parte da minha lição de casa aprender a ficar estacionada por mais tempo.
Entendo que essa experiência me tornou uma pessoa melhor do que eu era, e se esse tumor no meu cérebro tiver esse propósito, vamos conviver bem juntos até que a morte nos separe(ou nos una ainda mais). Sou grata pelo que estou vivendo.

Deitada, meio sonolenta, o primeiro dia me voltou  à mente:
Eu sentei desconfiada na frente do médico que tinha pedido mais exames do que eu esperava ter que fazer naquele dia.
Ele, visivelmente desconfortável, olhava para meus exames em sequência, depois de trás para frente.
Fez uma pausa olhando fixamente um dos laudos médicos, me olhou e respirou fundo cruzando os braços sobre a mesa com os dedos tensos: "- Você tem um tumor em uma área muito delicada do cérebro, e ele é na verdade bem maior do que mostrava a tomografia."

Percebi meu marido encostando-se para trás na cadeira bem devagar. A primeira coisa que pensei foi "Que bom que sou eu e não eles". (referindo-me ao meu filho e meu marido). Sorri para o médico e depois de um sonoro "OK" perguntei qual seria o próximo passo.

Naquele dia(e nos seguintes) eu tinha duas formas de lidar com a situação: olhar para o problema de perto ou à distância. O olhar próximo possibilita ver bem os detalhes, perceber intimamente, absorver. O olhar distante é mais vago, o contorno é menos definido, possibilita a fuga.
Optei por olhar de perto e mais: tocá-lo, ouvi-lo, torná-lo palatável.

Aprendi na vida que a forma mais eficaz de enfrentar um desafio é estabelecer uma relação íntima com ele. Conhecê-lo usando todos os sentidos. 

Ouvi uma verdade incômoda e precisava aceitá-la mesmo que isso custasse mudar radicalmente meu modo de vida dali em diante.
É isso que a verdade faz.

Precisava entender a nova realidade e lidar com ela de uma forma construtiva ou me tornaria uma vítima para o resto dos meus dias. Preciso agir diante dessa realidade de um modo coerente com aquilo em que acredito sem deixar que sombras emocionais e psicológicas dominem a situação.

Em seu livro "Colapso", Jared Diamond aborda um denominador comum entre os impérios falidos: a dissonância cognitiva
O conflito entre pensamento e ação. O não querer olhar de perto o problema, não querer ver o que está destoando, ignorar a realidade tentando encontrar justificativas de reforço para a incoerência adaptando o pensamento à circunstância.
"(...) O homem não age em função de seus pensamentos, mas pensa em função dos atos que as circunstâncias lhe impuseram. A coerência não é a não contradição das idéias ou dos saberes, mas a possibilidade deixada ao homem de achar, custe o que custar, garantias ideológicas aos atos aos quais a racionalidade nos escapa.

Muitas vezes somos reféns dessa incoerência entre o pensar e o agir. Reféns do olhar distante. Quantas vezes pensamos de uma forma mas somos impelidos a agir de forma oposta?  Quantas vezes nos deparamos com o "não enfrentar a situação", ou "fazer de conta que o problema não existe"? 

Idalberto Chiavenato, autor de Gestão de Pessoas, diz que "Quando uma pessoa age de maneira contrária ao que pensa, ocorre um estado de dissonância cognitiva. Surge assim um estado de tensão, ou angústia, então a pessoa reconstrói uma coerência cognitiva, dando um novo significado as crenças anteriores, ou ela muda seus comportamentos para adaptar-se a realidade externa." 

Estamos sempre tentando tornar a realidade mais confortável.

O modo como a gente percebe, interpreta e reage é influenciado pelas tensões que sofremos, pela noção de conveniência, pela acomodação ou medo.
Resta-nos escolher qual será nosso algoz e se vamos sucumbir à ele. Uma convergência de fatos e eventos definem nosso comportamento mas essa definição deve contemplar também nossos valores. 

Por outro lado, é certo que há maneiras de dizer aquilo que realmente pensamos e precisamos, de agir de forma alinhada com os nossos valores, desde que tenhamos a sabedoria de fazê-lo de modo adequado. "Quando mentir for preciso/poder falar a verdade" como diz a música de Maria Gadú. Ainda que quem nos ouça não queira essa verdade. Às vezes os cegos não querem ouvir ...

Custa caro, sim. Já paguei a juros altos o preço por agir conforme o que acredito e dizer o que penso. Não me arrependo, entendo isso como um modo honesto de viver minha humanidade e isso ajudou a firmar minha identidade. A gente precisa saber quem é e à quê veio. Egos ofendidos naufragam, a integridade sobrevive.


Ainda acredito que seja uma coisa boa ter por perto pessoas que saibam dizer o que realmente pensam de forma coerente e consistente. Que queiram sentir com honestidade. Isso ajuda a crescer e colabora com o nosso discernimento. O mundo seria melhor sem tantas dissonâncias. Falemos, de verdade, com as pessoas e procuremos realmente ouvir as pessoas. Digamos o que precisa ser dito também, e principalmente, a nós mesmos. É um caminho sábio. Forçar concordâncias é um caminho certo para o fracasso que virá, cedo ou tarde.

Viver em um baile de máscaras faz com que se perca a capacidade de diferenciar o verdadeiro e o falso. Com o tempo os mascarados já não conseguem dizer a verdade nem para si mesmos, perdem seus próprios referenciais.


Esse vídeo de hoje não poderia faltar. Adoro essa música desde a primeira vez que ouvi, em 2009, quando ainda não estava familiarizada com carecas e hospitais...
Que ela possa falar a verdade pra você como falou pra mim em momentos importantes. É um hino de viver (de um viver urgente, de amor imprescindível e de coragem fundamental). Que ela possa curar a vida de quem precisa e de quem acha que não precisa também.



segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Suum Cuique

Outro dia, no supermercado:
"- Mãe, eu quero um chocolate!"
"- Agora não, filho, que a gente já vai lanchar"disse a mãe distraída olhando as prateleiras do supermercado.
"- Mãe, me dá um chocolateeeeee!"
"- Espera, filho, que eu preciso terminar as compras". Ela continua olhando para a prateleira.
"Ô manheeeee, me dáááá..." A mãe pega um chocolate e joga no carrinho onde está o garoto. Sem tirar os olhos da prateleira. 

Ergui as sobrancelhas, balancei a cabeça e segui com minhas compras.

"Dai, pois, à César o que é de César, e à Deus o que é de Deus!" Com essa frase, Jesus Cristo respondeu não apenas aos herodianos uma questão sobre impostos, mas estabeleceu uma questão de ordem, de justiça e competência.
Muitos conflitos acontecem (e outros tantos são nutridos) porque este princípio é frequentemente ignorado.

Dar a cada um o que é seu (Suum cuique) assegura a ordem dos relacionamentos, dos objetivos, das empresas, da justiça, da família e da vida.
Mas sobre tudo o que recebemos, exercemos responsabilidade: é a questão de a pessoa certa estar fazendo a coisa certa no lugar e momento certos e ainda, pelas razões certas. Fica fácil então entender porque há tanto conflito no nosso dia-a-dia. Cada vez mais as coisas estão acontecendo fora desse princípio. A desordem corrompe e favorece a destruição e a ineficácia. A ordem é um corpo formado por prioridades claras, tempo certo, respeito à valores e hierarquia, sendo que esta última é um ponto essencial à ordem. Até em nosso corpo existe uma hierarquia. Nossas decisões, atos e desejos são movidos por hierarquias. É mesmo difícil ajustar-se à isso quando os valores não estão claros.

Uma das matérias mais complicadas no estudo de direito é a que trata das competências: um emaranhado onde pode ser difícil estabelecer com clareza muitas vezes quem pode julgar o quê.
Uma das coisas mais comuns nas famílias é ter conflitos derivados da má definição de papéis, gerando frustrações e cobranças sobre quem devia fazer o quê, onde e quando.
Um dos maiores sabotadores das corporações e instituições é a distorção de competência e que compromete diretamente o valor de liderança e responsabilidade, sobre quem sabe e pode fazer o quê (como e quando).
Um dos nossos maiores inimigos pessoais é o erro de julgamento na hora de definir quem é "César", no final das contas.

O mundo está tomado por um certo frenesi em que a disputa pelas competências atropelam os melhores valores humanos . E a pessoa errada acaba fazendo o que é errado, no lugar e momento errados, só que todo mundo acha certo porque afinal não sabem quem é "César". É um distúrbio de lucidez. Quando a identidade de "César" não está clara ou é erroneamente definida todo mundo perde, até quem acha que está ganhando, como o garotinho do supermercado. 

Suum cuique: à cada um o que é seu, nem mais, nem menos. Com cada macaco no seu galho os galhos da árvore não se quebram. E ela continua oferecendo sombra e abrigo para todos. O "César" é a árvore. É sempre a árvore que rege o mundo, não os macacos.


Abraço e boa semana.