quinta-feira, 26 de junho de 2014

A Cara da Riqueza



Em algum salão de beleza, um profissional de madeixas joga para o alto e para os lados o remanescente do que já foi a cabeleira de uma senhora:

“- AAAfff! Tá a cara da riqueza!!”. Satisfeita, a cliente vira a cabeça para um lado e para outro com olhar fixo no espelho enquanto toca com mãos espalmadas as pontas dos cabelos: “- Temos que investir na gente, né querido?”
 Beijos no ar, acerta a conta no caixa e um “-Até a semana que vem!”
O que esta dama faceira, o vale da morte do Salmo bíblico e a cultura espanhola têm em comum?
No conhecido Salmo 23, lemos “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.”

Durante os 36 dias de caminhada até Santiago de Compostela, na Espanha, também usei um cajado que me serviu (valeu) de apoio muitas vezes, e sempre que aceitava ou concordava com alguma coisa a expressão em espanhol utilizada era  ¡Vale!”.
Em todos os casos estão sendo atribuídos valores a uma experiência. Andar por um vale é atravessar uma região (ou um momento) onde estamos numa posição mais baixa que as montanhas ao redor, que nos impedem de ver além do horizonte que nos cerca com muros rochosos. Segundo o salmista, os medos e incertezas desta situação são compensados pelo valor do cajado e do suporte que ele proporciona para chegarmos bem sucedidos ao final da travessia. A travessia dos vales colocam à prova o valor do peregrino (e também os valores que o sustentam).

Ao usar a expressão ¡Vale!”, na Espanha, a aceitação e concordância agregadas a ela contém a mensagem subliminar de que aquilo que está em questão é valorizado.
Valor é uma propriedade atribuída àquilo que vale investimento de recurso financeiro, tempo ou dedicação.

No sistema sobre o qual se estabelece nossa civilização, praticamente tudo é “precificável”. No entanto, atribuir valor é hoje uma tarefa frequentemente mal compreendida. Não raro o valor de uma pessoa no “mercado social”é atribuído conforme seu poder de compra.

Quanto você vale?

   Ao usar a expressão “A cara da riqueza”, o cabeleireiro quis elogiar a cliente, associando sua imagem a algo caro e que, portanto, deve ter alto valor. Ao ver sua imagem melhorada esteticamente, a cliente entende que adquiriu mais valor com a nova imagem, agregando a si, indiretamente, o custo do serviço. Entretanto, há algumas questões aqui que merecem ser analisadas (vale investir nisso).

Valores mais altos são atribuídos a coisas raras ou feitas com materiais considerados “nobres”. Assim, por essa lógica, maior valor ou maior custo seria sinônimo de maior qualidade. Sabemos que essa não é uma regra exata, nem mesmo proporcional.

Por outro lado, ao investir em sua imagem a cliente entendeu que investiu em si mesma. Investir na imagem é muito importante, pois interfere diretamente em questões profundas da personalidade e da auto-estima. Sua imagem deve refletir e valorizar quem você é.
Porém, como eu disse, a imagem reflete, não “é”. Quando você vê sua imagem no espelho vê seu reflexo. Aquela é uma imagem projetada, não é você. Assim, quando a feliz dama escovada afirma que investiu em si mesma, investiu na imagem, não no ser.

Da mesma forma, quando você sai com amigos, vai a festas, faz um passeio, está investindo em lazer, não em você.

Dedicar-se ao cuidado com a imagem, usufruir do lazer, adquirir bens, são ações úteis, importantes e necessárias, mas aqui a ordem dos fatores interfere no resultado. Se não houver boa sustentação tudo vai ruir na primeira chuva e esse investimento não vai servir nem como remédio para a ressaca resultante. A  “cara da riqueza” vai beijar o chão.

Investir em você é investir tempo, dedicação e recursos em algo que agregue valor ao “ser”, ao aperfeiçoamento da mente, do espírito, da personalidade. Isso é o que nos define verdadeiramente. Este é o único valor que permanecerá com você por toda a sua existência. Todo o resto é efêmero. Todo o resto é reflexo. Sem investir nisso em primeiro lugar, todo o investimento paralelo é desperdiçado. Quando você se arruma diante do espelho, você vê transformar-se a imagem refletida nele a partir de seus gestos, não o contrário, salvo no caso em que alguém por algum motivo prefira pentear o espelho e não os próprios cabelos. Ainda assim, a imagem no espelho não vai mudar se a mudança não ocorrer em você.

Apesar disso, quanto você direciona em energia e recursos para investir em você, realmente? Na maioria dos casos, aplica-se tempo, dinheiro e dedicação ao lazer e à imagem no equívoco de estar investindo em si mesmo. Você é o resultado do investimento que faz no seu “ser”. Se o “ser”  cresce, amplia e aprofunda, isso vai refletir em tudo ao redor e haverá mais aspectos positivos a ser refletidos na imagem. O lazer também terá outro significado, deixando de suprir carências ou ser um momento de extravasar pressões com as quais não se sabe lidar para tornar-se o compartilhamento do “ser” feliz e realizado. O profissional será mais equilibrado, produtivo e eficaz pois conhecerá seu potencial. As relações afetivas e interpessoais serão mais geridas pelo suporte mútuo e pelas parcerias em vez da projeção de frustrações e cobranças. Sem um interior saudável tudo ao redor se contamina.

Por isso não desanimamos. Embora exteriormente estejamos a desgastar-nos, interiormente estamos sendo renovados dia após dia, pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós um valor eterno que pesa mais do que todos eles. Assim, fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno.” ( 2 Cor 4:16-18 )

Investir em você? ¡Vale!”


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Luzes Pálidas



Gosto de montar quebra-cabeças. Ver os fragmentos da desconstrução revelando o que estava oculto. É a oportunidade de descobrir detalhes que a contemplação da figura inteira não evidenciava.

Lembro de um que ganhei quando criança, tinha poucas peças, com a imagem de Branca de Neve e os sete anões.  Outra coisa de que gostava era assistir as comédias de Jerry Lewis  que volta e meia passavam na televisão (e que já eram antigos naquela época), enquanto comia pipoca.
Toda a criança se sente atraída por guloseima, comédia e desenho animado…e costumam não gostar do escuro.

Verdade é que, ao assistir Branca de Neve pela primeira vez, fiquei branca também – de medo.  Fiquei aterrorizada com os olhos daquela rainha má, me encarando das profundezas de uma TV à válvula. A coisa toda piorou ao ver a pobre princesa correndo desembestada na floresta escura ameaçada pelas árvores, sombras e olhos de coruja, fugindo do caçador que recebera ordens da rainha para arrancar-lhe o coração. História para crianças sobre uma psicopata narcisista, assassina devoradora de órgãos humanos?

Os contos de Perrault e de Grimm não revelam universos infantis. Não são apenas contos, são também quebra-cabeças. O Gato de Botas, com sua estratégia pouco ortodoxa e politicamente questionável de ascensão social, Chapeuzinho Vermelho, com uma descrição detalhada do lobo devorando uma velhinha com requintes que deixariam Hannibal Lecter com inveja (com direito a sangue engarrafado e tudo), ou Branca de Neve…

Segundo o pesquisador Eckhard Sander, os Irmãos Grimm encontraram uma contadora de estórias chamada Marie Hassenpflug, trezentos anos após o ocorrido com Margaretha von Waldeck, assassinada na Bélgica. Muito bonita e de pele muito clara, viveu com os pais, os Condes de Waldeck, no século XVI, no castelo que ficava em Bad Windugen, na Alemanha, onde cerca de 78 pessoas foram julgadas pela inquisição entre 1532 e 1664. A região, cercada por sete montanhas, tinha na mineração uma de suas principais atividades, o que causou problemas de crescimento em muitas crianças que trabalhavam nas minas. A mãe de Margaretha morreu pouco tempo após o parto do 11º filho, quando ela tinha 4 anos de idade. Cerca de dois anos depois seu pai casou-se com Katharina von Hatzfeld (a madrasta).
Ainda jovem, Margaretha foi enviada para Bruxelas (a floresta), na Bélgica. Em meio a intrigas envolvendo Filipe II de Espanha e uma contenda política na corte, a moça morreu envenenada por arsênico aos 21 anos, em 13 de março de 1554.

Na versão dos irmãos Grimm, Branca de Neve sofre quatro tentativas de assassinato: na primeira, a rainha envia o caçador e ordena que ele lhe traga o fígado e os pulmões da menina para posteriormente comê-los (uma prática comum em algumas culturas desde a antiguidade, visando absorver a força de quem é consumido). Nas outras tentativas a ingênua Branca de Neve acaba se deixando seduzir pela conversa da bruxa, sendo salva pelos anões, até que na quarta vez ela acaba “morrendo” engasgada ao morder a maçã (e ela nem estava no Éden…). A moça é colocada então em um caixão de vidro, sendo velada pelos anões, por uma coruja e, na sequencia, um corvo e uma pomba.
Ao fugir para a floresta, Branca de Neve adentrou a escuridão do desconhecido, conhecendo uma nova realidade além da proteção do castelo, mas foi preciso um trauma para que esse movimento acontecesse. Conforme vai descobrindo as nuances do espírito humano (os sete anões, a bruxa) e deparando-se com a realidade ameaçadora, a inoscência infantil de quem vive no imediatismo vai dando lugar ao entendimento, adquirindo conhecimento. Porém, para adquirir conhecimento é preciso “morrer”. É preciso desapegar do ser anterior, absorver o conhecimento adquirido (no recolhimento, casulo ou caixão de vidro), para então despertar para a vida com um novo olhar para trilhar novos caminhos para novos destinos. A sequencia coruja, corvo e pomba trazem a simbologia do processo ilustrando o ciclo: a coruja, um animal da noite, simbolizando o conhecimento racional e intuitivo, a sabedoria. O Corvo, um símbolo de solidão, cura e morte. Por fim, a pomba – paz, liberdade e renascimento.
Vencer a escuridão e a morte não é um convite atrativo, mas é um desafio necessário para os que buscam o conhecimento que traz paz e liberdade, algo que a inoscência infantil, do querer a satisfação das necessidades imediatas, não nos permite alcançar. 
Contos, fadas, bruxas e espadas. À noite somem as flores, para prestarmos atenção às estrelas.
Afinal as luzes, na claridade, são pálidas.
Vídeo deste post: 

terça-feira, 3 de junho de 2014

Samba do Vazamento




“Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”
(Samba enredo da escola Imperatriz Leopoldinense – 1989)

Mãos com luvas sujas, aplicando uma massa na estrutura da pia da cozinha para consertar uma infiltração.  As instruções na embalagem  orientavam: Cura total do produto em 7 dias.  Só poderia usar a pia apropriadamente após a cura.

A liberdade tem asas. Também Nice (Niké em Grego – que inspirou a marca famosa de tênis), a deusa da vitória que ornava o troféu original das Copas do Mundo, a Taça Jules Rimet, era representada com asas.  A estátua da Vitória de Samotrácia, no Museu do Louvre, está sem cabeça – mas ainda tem as grandes asas. Só que essas asas têm um preço.

Quem é verdadeiramente livre, se vivemos atrelados à tantas dependências externas? O quê nos torna livres quando há tanta vigilância e violência, quando nossas necessidades são ditadas pela mídia e os sistemas sociais falham?

Quem é livre sem ser líder? 

Há quem afirme que a verdadeira liberdade está no reino dos céus. Porém, é impossível entrar nesse reino sem antes entrar em si mesmo. Mas como isso funciona?

Somos prisioneiros da clausura de nossos medos, algemados em nossos traumas e acorrentados aos grilhões da ignorância.

Culpamos as agruras da vida pelo nosso aprisionamento. É essencial acordar desse torpor e vislumbrar o real cenário: Nenhuma desventura acaba com você - apenas o transforma para melhor ou pior. Essa transformação é inevitável e seu resultado depende do modo como você se coloca diante do desafio dessa mudança: Busca uma zona de conforto (desculpa)?  Se sente injustiçado (vítima)?  Enfia a cabeça em um buraco e finge que nada está acontecendo? Culpa alguém pela frustração acumulada por você? Segue em frente e espera que o tempo ou alguém apareça com a solução que você precisa elaborar?

Ainda que se sofra física e emocionalmente, todo o flagelo pode ser aliviado pela compreensão e pela visão clara do cenário que é maior que o nosso contexto pessoal limitado. Não que devamos aceitar tais flagelos passivamente, mas é preciso entender os mecanismos que os causam administrando  seus efeitos de modo a torná-los produtivos, agindo para obter uma cura mais profunda para as enfermidades, físicas ou não, que afetam nossa vida. “Para todo o mal há cura” diz a letra da música de Lulu Santos.

Cura abrange sentidos bem amplos: pode ser a cura de uma situação infrutífera, insatisfatória, ou de uma doença física, psicológica ou emocional, vencendo o mal que aflige o ser (olha a vitória aí de novo…). Na culinária a cura é o processo de preservação de certos alimentos e o aprimoramento do sabor. Já na química, cura é a reação de endurecimento de um material tornando-o mais resistente. Em qualquer desses sentidos, a cura é a liberação para usufruir. Como a pia da minha cozinha, que não vaza mais.

Da mesma forma o termo “são”: Conjuga o Ser na 3 pessoa do plural (o ser coletivo – que faz parte de um todo), define o que tem saúde, o que é inteiro, sensato, ou é o diminutivo de santo.

A cura nos torna sãos, nos faz melhores sanando o vazamento que desperdiça energia. A cura liberta não apenas da doença, mas da estagnação que gera a falsa sensação de segurança e a ilusão de satisfação. A cura é uma escolha desconfortável.

O agente que definirá o suporte desse processo de cura chama-se psique (do grego psych), cujo significado é sopro, alma, aquilo que nos define intimamente. Já na antiga Grécia a psique era frequentemente representada na forma de uma borboleta, a metáfora da imortalidade da alma através dos ciclos, que após uma existência rastejante como lagarta é capaz de ressurgir de si mesma e gozar a liberdade (e com asas ! ). São as asas dessa borboleta que nos possibilitarão o vôo da liberdade tornando-nos vitoriosos sobre nós mesmos.

O aprimoramento pelas lições da alma possibilita a verdadeira e profunda mudança, é o catalizador da cura. É uma medicação com efeitos à longo prazo, obtidos pela dança voluntária com as nossas dores, ainda que os pés estejam feridos. Eles terão descanso quando você parar de rastejar e adquirir suas asas.

É preciso que se queira passar pelo doloroso processo de cura operando as ações que sejam requeridas para concluí-lo. É preciso vontade e força para deixar o casulo, livrando-se das algemas para abrir os braços e receber  asas  capazes de voar.

Evidentemente é preciso que haja transformação e movimento para que a cura ocorra possibilitando evolução, mas o que é óbvio para uns nem sempre é ululante para outros e há que se conviver com isso.

Contudo, a inegável verdade é que sem cura, não há asas. Sem asas, não há liberdade e sem liberdade não existe vitória.

Considero o vídeo deste post um dos mais especiais :
https://www.youtube.com/watch?v=OIvHSiIEpc4