quinta-feira, 5 de março de 2015

Geladeiras Falantes






* Obs: A situação aqui descrita foi escrita e publicada com a anuência expressa dos envolvidos.




A passos entediados ele alcança a geladeira, abre a porta e fica olhando lá dentro, como quem contempla a paisagem através de uma janela. Um suspiro, fecha a porta e sai da cozinha estendendo o braço, dando um “tapa” no interruptor para apagar a luz.

Não muito longe dali, em uma empresa, a secretária da diretoria se revoltava com o odor fétido que rescendia da geladeira da copa toda a vez que alguém abria a porta para pegar alguma coisa. Restos esquecidos de donos anônimos.

 Cenas como estas acontecem na vida de muitas pessoas pelo menos uma vez. Aconteceu com uma pessoa que veio ao meu consultório.

A pessoa costumeiramente ia até a geladeira, abria a porta, olhava, fechava a porta.

“ - Como é sua geladeira?” Perguntei.
“ - Como assim?”
“ - Como é, o que tem dentro, como guarda as coisas?” - Insisti.
Um pouco desconfortável, respondeu:
“ - Sei lá, tem coisas de geladeira.”

Pedi que fechasse os olhos e descrevesse o que via quando abria a geladeira tentando visualizar o máximo de detalhes possível. A partir desta descrição, pudemos identificar todas as questões carentes de organização e respostas em sua vida prática. Ao final da sessão, ao se despedir, olhou-me firmemente e disse: “- Caramba, a minha geladeira fala!!”. Sorriu e disse que voltaria na próxima semana com uma nova  “lista de compras”.

Sim, as geladeiras falam. Elas nos contam sobre nossos gostos, apegos e medos. Acusam nossas procrastinações, denunciam a ausência de pro-atividade, a deficiência de planejamento, nossas carências, nossa forma de administração do tempo. Elas avaliam nossa habilidade de gestão e disciplina.
Geladeiras...algumas não falam, gritam, como no caso das corporativas, aquelas que ninguém quer limpar porque o lixo apodrecendo lá não é de ninguém. Mas o mau-cheiro perturba a todos os que as usam. Iogurtes vencidos? Presuntos e frutas apodrecidos? Convivo com o mau cheiro, reclamo, mas não removo, porque isso não faz parte das minhas atribuições. Espero que alguém vá lá e resolva.

Em casa, vou empurrando as sobras para o fundo das prateleiras, para consumir amanhã ou depois, dá pena jogar comida fora com tanta fome no mundo...restinho aqui, restinho ali, quem sabe alguém consome. Deixo ali até que fique impossível de consumir, só assim jogo fora o que eu não quero mais, sem sentir culpa.

Geladeiras falam. Por isso as pessoas vão até lá e ficam contemplando. Para escutar as verdades guardadas lá dentro. Mesmo que não consigam ouvir nada do que está sendo dito, há uma sensação temporária de conforto que se traduz em uma ilusória sensação de que as coisas são mesmo assim e está tudo certo, pelo menos até a inquietude bater e dar vontade de abrir a geladeira de novo.

Não há como alguém arrumar a própria vida sem antes arrumar a geladeira... A vontade (abrir a geladeira e ficar olhando) é a promessa de uma conquista mas só através da ação (arrumar a geladeira) é possível cumpri-la. A gente precisa fazer na mesma proporção do querer. Ainda que eu erre e caia, a cada vez que eu supero o medo de realizar me torno mais forte.